sábado, 6 de novembro de 2010

A arte de Viver

Todos procuram paz e harmonia, porque é isso que falta nas nossas vidas. De vez em quando todos experimentam agitação, irritação, desarmonia, sofrimento; e, quando isso acontece, não mantemos esses sentimentos só para nós. Propagamo-los também aos outros. Agitação permeia a atmosfera que circunda a pessoa em sofrimento. Todos aqueles que entram em contato com a pessoa em questão, contaminam-se também, ficando igualmente agitados, irritados. Certamente que não é essa a maneira adequada de viver.
Nós devíamos viver em paz conosco e com os outros. Antes de qualquer coisa, o ser humano é um ser social, tem que saber viver em sociedade e lidar com os outros. Mas, como vamos nós viver pacificamente? Como vamos nós manter a harmonia interior, manter a paz e a harmonia à nossa volta, para que os outros possam também viver pacífica e harmoniosamente?
Para nos libertarmos da agitação interior, temos que entender a razão básica da sua existência, a causa desse sofrimento. Se investigarmos o problema, tomar-se-á claro, sem demora que, sempre que começarmos a gerar qualquer negatividade ou impureza na mente, sentimos invadidos pelo sentimento da agitação. A negatividade ou impureza mental dificilmente coexiste com a paz e a harmonia.
Como é que se começa a gerar negatividade? Novamente, investigando, toma-se claro. Tornamo-nos infelizes quando achamos que alguém se comporta de um modo de que não gostamos, ou quando não gostamos de alguma coisa que acontece. Coisas indesejáveis acontecem e criamos tensão interior. Coisas desejáveis não acontecem devido ao aparecimento de alguns obstáculos no caminho e, novamente, criamos tensão interior; começamos a criar "nós" no nosso interior. E, pela vida fora, coisas indesejáveis continuam a acontecer, as desejáveis podem ou não acontecer, e este processo de reação, de criar nós - nós cegos - faz com que toda a estrutura física e mental fique tão tensa, tão cheia de negatividades, que a vida se toma miserável.
Ora, uma forma de resolver este problema é conseguir que nada de desagradável aconteça na vida, que tudo aconteça exatamente como desejamos. Devemos, então, desenvolver esse poder ou conhecer alguém que o possua e venha em nosso auxílio sempre que o requisitarmos, para que tudo o que seja desejável aconteça e o indesejável não aconteça. Porém, isso é impossível! Não existe ninguém no mundo cujos desejos sejam sempre satisfeitos, cuja vida ocorra sempre de acordo com a sua vontade, sem que nada de indesejável aconteça. Fatos contrários aos nossos desejos e à nossa vontade ocorrem constantemente. Surge, então, uma questão: como poderemos parar de reagir cegamente perante aquelas coisas de que não gostamos? Como poderemos nós não criar tensão interior? Como permanecer em paz e harmonia?
Na Índia, assim como em outros países, pessoas sábias e santas do passado estudaram este problema - o problema do sofrimento humano - e encontraram uma solução: se algo indesejável ocorre e reagimos gerando raiva, medo ou qualquer outra negatividade deve, então, desviar a nossa atenção o mais rápido possível para qualquer outra coisa. Por exemplo; levante-se, pegue um copo de água, comece a bebê-la - assim, a sua raiva não se intensificará, pelo contrário, começará a diminuir. Ou comece a contar: um, dois, três, quatro. Ou comece a repetir uma palavra, uma frase ou um mantra; talvez o nome de um santo ou de uma divindade à qual tenha devoção. A mente dispersar-se-á e, até certo ponto, estará liberta da negatividade, da raiva.
Esta solução foi útil; provou dar resultados. Ainda hoje dá. Praticando isso, a mente liberta-se da agitação. Contudo, essa solução atua apenas ao nível consciente. Na realidade, ao desviar a atenção, impelimos a negatividade para o inconsciente profundo e, a esse nível, continuamos a gerar e multiplicar a mesma negatividade. A superfície existe uma camada de paz e harmonia, mas nas profundezas da mente jaz um vulcão adormecido de negatividade suprimida que, mais cedo ou mais tarde, explodirá numa erupção violenta.
Outros exploradores da verdade interior foram ainda mais longe na sua busca; e, vivenciando a realidade da mente e da matéria em si mesmos, concluíram que desviar a atenção é apenas fugir do problema. Fugir não é solução. É necessário enfrentar o problema. Sempre que uma negatividade surgir na mente, observe-a, enfrente-a. Assim que se começa a observar qualquer impureza mental, a mesma começará a perder a sua força. Lentamente desaparece e é neutralizada.
Uma boa solução é evitar os dois extremos - repressão ou livre manifestação. Manter a negatividade no inconsciente não a erradicará; permitir sua manifestação, através de ações verbais ou físicas, apenas criará mais problemas. Porém, se apenas se mantiver a observar, a impureza desaparecerá e conseguirá neutralizar aquela negatividade.
Isto parece maravilhoso, mas será realmente praticável? Será fácil para uma pessoa vulgar encarar negatividades? Quando a raiva surge, apodera-se de nós tão rapidamente que nem nos apercebemos. Então, dominados pela raiva, cometemos certas ações físicas ou verbais que nos prejudicam e prejudicam os outros. Mais tarde, quando tudo passa, arrependemo-nos e pedimos perdão. Contudo, na próxima vez que nos encontramos numa situação semelhante, voltamos a reagir da mesma maneira. Esse tipo de arrependimento não ajuda em nada.
A dificuldade é que não temos consciência quando surge uma negatividade. Tudo começa ao nível do inconsciente profundo da mente. Quando chega ao nível consciente, já ganhou tanta força que nos deixamos subjugar totalmente, retirando-nos a capacidade para observar. Ficamos, então, possuídos pela raiva e nenhum conselho nos ajudará.
Assim que fechamos os olhos e tentamos observar a raiva, o objeto da raiva surge imediatamente na mente - a pessoa ou a situação que me provocou a raiva. Nesse caso, não estou a observar a raiva em si mesma. Estou apenas a observar o estímulo exterior da emoção; isso não é solução. Só que, é muito difícil observar qualquer negatividade ou emoção abstrata, divorciada do objeto exterior que a provocou.
Contudo, aquele que alcançou a verdade última (Gautama o Buda), encontrou uma solução real. Descobriu que sempre que uma negatividade surge na mente, começam a acontecer, em simultâneo, duas coisas ao nível físico. A primeira é que a respiração perde o seu ritmo natural; começamos a respirar mais fortemente sempre que uma negatividade surge na mente. A segunda passa-se a um nível mais subtil; uma espécie de reação bioquímica faz-se sentir no corpo - uma sensação. Toda e qualquer negatividade criará uma sensação interior numa ou noutra parte do corpo.
Parece-nos uma solução prática. Uma pessoa vulgar não consegue observar emoções abstratas da mente - medo, raiva ou paixão abstrata. Mas, com a prática e o treino adequado, é muito fácil observar a respiração e as sensações no corpo, ambas diretamente relacionadas com negatividades na mente.
A respiração e as sensações podem auxiliar de duas maneiras. Primeira; assim que uma impureza surgir na mente, a respiração perderá o seu ritmo normal, que é em si, um aviso. À semelhança da primeira, as sensações dizem-nos igualmente que algo está mal. Assim, tendo sido avisados, começamos a observar a respiração e as sensações e, rápida mente, veremos que a negatividade pára e desaparece.
Este fenômeno físico-mental é como uma moeda de dois lados. Num dos lados, estão os pensamentos e as emoções que surgem na mente. No outro, estão a respiração e as sensações no corpo. Quaisquer pensamentos ou emoções, conscientes ou inconscientes, qualquer impureza mental que surja, manifestam-se na respiração e nas sensações do momento. Logo, observando a respiração ou as sensações, estamos a observar indiretamente a negatividade mental. Em vez de fugir da situação, enfrentamos a realidade tal como é. A negatividade perderá a sua força: não nos subjugará mais como fez no passado. Se persistirmos, a impureza eventualmente será neutralizada e manter-se-á a paz e a harmonia.
Desta forma, a técnica de auto-observação mostra-nos a realidade tal como é nos seus dois aspectos, interna e externa. Tentamos sempre encontrar no exterior a causa da nossa infelicidade; tentamos sempre mudar a realidade externa. Ignorantes da realidade interna, dificilmente compreendem que a causa do sofrimento se encontra no nosso interior.
Agora, com treino, podemos ver o outro lado da moeda. Podemos tomar consciência da respiração e também do que acontece em nós. O que quer que seja, respiração ou sensação, aprendemos a observá-las sem perder o equilíbrio mental. Paramos de reagir, de multiplicar as nossas misérias. Pelo contrário, permitimos que as impurezas se manifestem e sejam neutralizadas.
Quanto mais praticamos esta técnica, mais depressa descobrimos que nos podemos libertar das negatividades. A mente vai-se libertando gradualmente das impurezas, tornando-se pura (limpa). Uma mente pura está sempre cheia de amor - amor desinteressado pelos outros; cheia de compaixão pelas falhas e sofrimentos dos outros; cheia de alegria pelo seu sucesso e felicidade; cheia de equanimidade perante qualquer situação.
Quando alguém atinge este estágio, todo o seu padrão de vida muda. Não é mais possível fazer ou falar qualquer coisa que perturbe a paz e a alegria dos outros. Em vez disso, uma mente equilibrada não apenas se torna pacífica, mas ajuda também os outros a serem pacíficos. A atmosfera que cerca uma tal pessoa é permeada de paz e harmonia. E isso influenciará e ajudará também os outros.
Quando se alcança este estado de consciência, o programa inteiro da nossa vida começa a mudar. Não é mais possível fazer qualquer coisa, verbal ou física, que perturbe a paz e a felicidade dos outros. Em vez disso, a mente equilibrada não só se torna pacífica por si mesma, como também ajuda os outros a estarem em paz. A atmosfera que rodeia tal pessoa, permeada de paz e harmonia, começará também a afetar os outros.
Aprendendo a permanecer equilibrado perante todas as coisas que se vivencia internamente, desenvolve-se o desapego a todas as situações exteriores. Contudo, tal desapego não se trata de fuga ou indiferença aos problemas do mundo. Aqueles que praticam o bem regularmente, tornam-se mais sensíveis ao sofrimento dos outros e fazem o seu melhor para aliviar esse sofrimento da melhor forma que podem - não com agitação, mas com uma mente cheia de amor, compaixão e equanimidade. Aprendem a "santa indiferença" - como estar totalmente comprometidos, totalmente envolvidos em ajudar os outros, enquanto que, ao mesmo tempo, mantêm o equilíbrio mental. Desta forma, permanecem pacíficos e felizes enquanto trabalham para a paz e felicidade dos outros.
Este foi o ensinamento de Buda: a arte de viver. Nunca estabeleceu ou ensinou qualquer religião, nenhum "ismo", nunca instruiu os seus seguidores em qualquer rito ou ritual, em alguma formalidade cega ou vazia. Pelo contrário, ensinava-os a observar a natureza tal como é observando a realidade interior. Na ignorância, continuamos a reagir de maneira prejudicial relativamente a nós e aos outros. Porém, quando a sabedoria surge - discernimento de observar a realidade tal como é - libertamo-nos desse hábito de reagir. Quando paramos de reagir cegamente, então, somos capazes de exercer a ação verdadeira - ação proveniente de uma mente equilibrada e equânime que vê e compreende a verdade. Tal ação poderá ser apenas positiva, criativa e benéfica para todos.
Logo, o que é necessário é conhecer-se a si mesmo - conselho dado por todo o sábio. Devemos conhecer-nos a nós mesmos, não apenas intelectualmente, ao nível teórico e das idéias. Também não quer dizer conhecer-nos a nível emocional e devocional, aceitando cegamente o que lemos e ouvimos. Tal conhecimento não é suficiente. Mais do que isso, devemos conhecer a realidade presente, vivenciar diretamente a realidade deste fenômeno mental-físico. Apenas isso nos ajudará a libertar-nos das negatividades e do sofrimento.
Esta técnica de experiência direta da nossa realidade, esta técnica de auto-observação, é conhecida por meditação "Vipassana". Na língua da Índia e nos tempos de Buda passanã significava ver com os olhos abertos; mas Vipassana é observar as coisas como realmente são, não como parecem ser. A realidade aparente tem que ser penetrada, até alcançarmos a verdade última de toda a estrutura física e mental. Quando vivenciamos esta verdade, então aprendemos a parar de reagir cegamente, de criar negatividades - e, naturalmente, as antigas impurezas são gradualmente erradicadas. Somos libertados de todo o sofrimento e experimentaremos felicidade.
Existem três etapas no treino dado num curso de meditação Vipassana. Primeiro, devemos abstermos de qualquer ação, física ou verbal, que perturbe a paz e a harmonia dos outros. Não podemos trabalhar para nos libertar de impurezas da mente quando, ao mesmo tempo, continuamos a atuar física e verbalmente de modo a intensificar essas impurezas. Por isso, um código de moralidade é o primeiro passo essencial da prática. Existe assim um compromisso de não matar, não roubar, não praticar qualquer atividade sexual, não dizer mentiras e não ingerir intoxicantes. Abstendo-nos de praticar tais ações, permitimos que a mente se acalme.
O passo seguinte é desenvolver alguma mestria sobre a mente selvagem, treinando-a a permanecer fixa num objeto único: a respiração. Tentamos manter a nossa atenção na respiração o maior tempo possível. Isto não é um exercício de respiração: não tentamos regularizar a respiração. Apenas observamos o nosso fluxo respiratório natural, a entrar e a sair. Deste modo, vamos acalmando mais a mente, para não ser dominada por negatividades tão intensas. Ao mesmo tempo, estamos a concentrar a mente, tornando-a mais aguda e penetrante, capaz do trabalho da visão interior ("insight").
Estes dois primeiros passos, viver uma vida moral e controlar a mente, são muito benéficos e necessários por si só; porém, podem conduzir-nos à repressão, a não ser que se tome um terceiro passo - purificar a mente das impurezas, desenvolvendo a visão interior da nossa própria natureza. Isto é Vipassana: vivenciar a própria realidade interna, através da observação sistemática e imparcial do fenômeno mental-físico, sempre mutante, que se manifesta enquanto sensações. Este é o culminar dos ensinamentos de Buda: auto-purificação através da auto-observação.
Isto pode ser praticado por todos. Todas as pessoas enfrentam o problema do sofrimento. É uma doença universal que requer um remédio universal, não-sectário. Quando alguém sofre com raiva, não é raiva budista, hindu ou cristã. Raiva é raiva. Quando alguém fica agitado em conseqüência dessa raiva, a agitação não é cristã, judia ou muçulmana. O sofrimento é universal. O remédio deve ser também universal.
Vipassana é o remédio. Ninguém se oporá a um código de vivência que respeite a paz e a harmonia dos outros. Ninguém se oporá ao desenvolvimento do controlo da mente. Ninguém se oporá ao desenvolvimento da visão  clara/interior da sua própria natureza, através da qual é possível libertar a mente de negatividades. Vipassana é um caminho universal.
Observar a realidade tal como é através da observação da verdade interior, é conhecer-se a si próprio ao nível direto e vivencial. À medida que se pratica, mantém-se a mente livre de negatividades. A partir da realidade grosseira, externa e aparente, penetra-se na verdade última da mente e da matéria. Só depois se transcende esse estado e se experiência uma verdade que está para além da mente e da matéria, para além do tempo e do espaço, para além do campo condicionado da relatividade: a verdade da libertação total de todas as negatividades, todas as impurezas e todo o sofrimento. Qualquer que seja o nome que se dê à verdade última, é irrelevante; é o objetivo final de todos nós.
Que todos possam viver esta verdade fundamental! Que todos possam libertar-se das impurezas e das misérias. Que todos possam desfrutar da verdadeira felicidade, da verdadeira paz e da verdadeira harmonia!
QUE TODOS OS SERES SEJAM FELIZES.

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